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segunda-feira, 22 de junho de 2009

A DESCONSTRUÇÃO DO TEMPO



CRÔNICA 61


Encontrei com uma amiga na rua que tem uma história curiosa. Há dez anos comprou um apartamento na mesma rua onde mora e ainda não se mudou. Como o imóvel é uma cobertura de dois andares, as obras de reforma ainda não acabaram e “aos poucos” ela vem fazendo a mudança. É claro que virou piada na família e agora ninguém mais comenta o assunto, como se fosse um tabu. Durante os três primeiros anos perguntavam interessados pela mudança, depois brincavam e, finalmente, acharam melhor deixar o tema de lado, pois não entendiam mesmo como alguém leva anos para se mudar para um apartamento que, ironicamente, se localiza na mesma rua.
Também não tenho a menor ideia do motivo (ou motivos) que impede a família de se mudar. Até porque o outro apartamento é melhor e maior. O que importa aqui é que a história é verdadeira. E, pensando bem, me lembro de outras parecidas, de pessoas que ficaram anos fazendo uma casa ou uma reforma, sem previsão de término. No fundo, a partir de um momento, todos sabiam que a tal obra não iria acabar.
Não faço jogo de palavras, mas não era uma casa o que estava sendo construído, mas o passar do tempo. Tijolos e cimento são um exemplo bastante concreto da materialização da passagem do tempo. Ou seja, se a casa ficasse pronta, eles não teriam mais o que fazer, perderiam talvez o objetivo na vida, os dias pesariam sem finalidade.
Você deve estar achando toda esta história muito estranha. Também acho a princípio. São, no entanto, histórias reais que aconteceram/acontecem aqui na família, na esquina, no bairro... Não se trata de um caso sobre pessoas com problemas psicólogos ou apenas esquisitas, para as quais olhamos com distância, achando que não somos assim. Afinal somos normais, coerentes e lógicos.
Que tal vermos como mais uma história de adiamento da vida? E bastante palpável: adiar uma mudança de casa, ainda que para a mesma rua, é adiar uma oportunidade de melhoria, de mais conforto ou de mais privacidade ou de mais silencia, enfim de algo que, de alguma forma, segundo os valores e desejos da pessoa, lhe traria mais bem estar. No entanto, ela adiou esta oportunidade por dez anos. Poderia, é claro, ter morrido, sem nunca ter se mudado.
Tudo isto pode parecer simples e, em certo sentido, o é. Mas que tal pensarmos em quantas coisas deixamos de fazer, principalmente as simples, se bem que não é todo dia que podemos adquiri um imóvel. E no fim nem saberemos que morremos em dívida com nós mesmos.

Katia Sarkis


sexta-feira, 19 de junho de 2009

OS OUTROS, SEMPRE OS OUTROS




CRÔNICA 60


No ambiente familiar ou profissional é comum nas conversas a referência a um terceiro. Há aquele primo de novo desempregado ou o amigo, coitado, que não vive bem com a mulher. Isto significa que quem faz este comentário tem emprego e tem, ou pelo menos aparenta, um relacionamento conjugal bom. Ou ainda, quer disfarçar alguma dificuldade profissional ou amorosa e, por isso, fala dos problemas dos outros. Pois se ele menciona o desajuste entre um casal, é sinal de que tudo vai às mil maravilhas no plano afetivo. Ninguém vai desconfiar, por exemplo, que quem critica o vizinho que não para em um emprego esteja desempregado também. Esta é a lógica.
Reparem como nas conversas existe a tendência a se falar de alguém, para censurar, criticar, discordar. Os outros vivem nos dando problemas: duas mães falam dos filhos adolescentes e de que como é difícil esta fase; duas filhas falam das mães idosas e de que como é difícil esta fase; dois amigos falam das ex-mulheres, depois da separação, e de que como é difícil esta fase...
Sei que não lá muito educado, mas observe as conversas nas ruas: há sempre um alguém como objeto da conversa e ele está sempre em um plano inferior, com algum tipo de problema. Mas se escutasse os conselhos dos pais, as opiniões dos amigos, as orientações do chefe...seria outra pessoa. Muito melhor, é claro.
Estatisticamente, quando falamos de outra pessoa, 90% das vezes é para apontar-lhes defeitos e só 10% para fazer elogios. Isto se não lembrarmos que muitas vezes os elogios vêm acompanhados de restrições: “se deu bem na vida, mas também com o dinheiro e os prestígio do pai, ficou fácil...”; “está fazendo um sucesso incrível, mas também com a beleza que Deus lhe deu tudo vem às suas mãos...”
A vida só é difícil para nós. Nós é que somos os únicos heróis por nossas pequenas conquistas. Os outros, não; são sempre coadjuvantes ou figurantes de nossas vidas e sem nunca terem uma indicação ao Oscar.

Katia Sarkis

terça-feira, 16 de junho de 2009

TUDO TEM UM PREÇO


CRÔNICA 59


A indústria capitalista atrai seus clientes com palavras como bônus, brinde, gratuito, porque eles, acostumados a pagar por tudo (poderia ser de outra forma?) sentem-se seduzidos por algo que é falsamente de graça. Tais pessoas querem no fundo ter a sensação de que estão ganhando algo, de que estão levando vantagem. E é óbvio que não é isto o que acontece.
Se o artista não voltar para o bis, é mal visto, é tido como antipático, porque não ofereceu uma, duas ou três músicas de “graça” para a platéia. Este sentimento guloso de usufruir ou conseguir algo sem pagar revela o outro lado da questão: ter que pagar por tudo que obtemos.
A frase é velha. Tudo tem um preço, ou, pior, todos têm um preço. Este preço não é necessariamente em moeda sonante ou pago por cartão de crédito ou título do tesouro nacional; mas há um custo e, portanto, há a expectativa de uma pagamento.
O adulto infantil ou irresponsável é aquele que foge de pagar as coisas ou espera que alguém o faça por ele. Repito: aqui não me refiro a pagamento apenas em dinheiro. É claro que, no caso de uma dívida financeira, fica bem fácil perceber a irresponsabilidade ou a imaturidade de quem a contrai. Mas vejamos outros exemplos: aquele que trabalha de dia e estuda à noite e, ainda por cima, mora longe dos locais de trabalho e de estudo, sabe o preço que paga pela aquisição de conhecimento e pelo diploma. Ele, sem dúvida, dará mais valor ao estudo e à profissão, pois sabe o esforço que fez para conquistá-los.
Em qualquer relação, seja familiar, amorosa ou profissional, há sempre um preço a ser pago, para se ter tal namorado ou permanecer naquele emprego. Não quero dizer com isto que as pessoas sejam (ou tenham que ser) venais. Muito pelo contrário. Aqui pagar um preço não é se vender, não é se sujeitar ou abrir mão de suas idéias e princípios. Pagar um preço é empenhar-se por uma conquista e não esperar que ele caia do céu em suas mãos.
Quem não está disposto a pagar o preço das coisas não quer assumir a sua vida, não quer assinar o seu destino. Esta omissão em relação à própria vida talvez seja o preço mais elevado que pagamos para, em troca, olharmos de braços cruzados o tempo passar, sem sermos obrigados a um único gesto.

Katia Sarkis

domingo, 14 de junho de 2009

NÃO LEIO, NÃO OUÇO, NÃO VEJO.


CRÔNICA 58

Hoje cedo no mercado dei com uma mudança: as mercadorias passaram a ser pesadas com o caixa e não mais com um funcionário exclusivo para a balança. Havia vários cartazes espalhados pelo mercado avisando da mudança que ocorreu há três dias e, de vez em quando, pelo alto-falante a mudança era repetida.
Obviamente que no ponto das antigas balanças não há mais funcionários, só as balanças que ainda não foram retiradas. Mesmo assim, observei que várias pessoas perguntavam se eles não pesariam mais as verduras e frutas ali, como se não houvesse cartazes avisando e como e o aviso pelo alto-falante fosse falso. Era preciso que o funcionário repetisse pessoalmente que tudo passou a ser pesado na hora do pagamento, nas caixas.
O fato parece banal e talvez não seja tanto assim, embora cotidiano. Seriam todos os clientes do mercado analfabetos e ao mesmo tempo surdos? É claro que não. Ou melhor: é claro que os que perguntaram diretamente a um funcionário são. Não no sentido literal, mas são. Analfabetos, porque ignoram a linguagem escrita, porque não têm o hábito de ler cartazes, quadros de avisos, comunicados etc; só levam em consideração o que ouvem. E surdos, sim, no sentido de que não ouvem tudo, só que já sabem ou o que lhes interessa ouvir.
Há alunos que têm a mania de perguntar aos professores sobre o enunciados das questões na hora da prova: querem saber, por exemplo, se quando o a questão pede para dar as causas da revolução francesa era para dar as causas da revolução francesa. Para quem nunca teve esta experiência na escola pode parecer piada, mas isto acontece com mais frequência do que supomos. Sem dúvida, o aluno está inseguro e mal acostumado. Precisa ouvir do professor as mesmas palavras do enunciado.
Creio, porém, que isto não ocorra só com alunos adolescentes e clientes de mercados. Os casos acima, além de verdadeiros, devem ser lidos como parábolas. Muitas vemos não enxergamos/lemos o que está escrito, nem ouvimos o que dito, mesmo com a potência de um alto-falante. E por quê?
Estamos tão ensimesmados que não percebemos o outro? Só lemos ou ouvimos o que já sabemos? Ou com medo de cometermos um erro de interpretação, esperamos que alguém nos diga o que já escrito e/ou dito, pois assim não somos responsáveis?
Acho que podemos enumerar várias suposições como motivos reais para a cegueira e surdez e talvez um só não responda. Talvez haja de fato a combinação de várias hipóteses. De qualquer forma, fica a parábola do analfabeto e surdo para reflexão. Você tem ouvido o que filho, colega, namorado, vizinho, conhecido ou estranho lhe diz no dia a dia? E por que não?

Katia Sarkis

avia váHav

quinta-feira, 11 de junho de 2009

O GASTADOR

CRÔNICA 57

O modo como lidamos com o dinheiro revela muito do que somos. Dos vários tipos há dois que, por serem opostos, são facilmente identificados: o poupador e o gastador. Ambos, se exagerados, são prejudiciais. Mas do ponto de vista estritamente financeiro o gastador dá muito mais dor de cabeça.
Ele adora cartões de crédito, no plural mesmo, cheque especial, prestações a perder de vista, empréstimo de todo tipo (de financeira à família), e, em último caso, agiota. O céu é o limite, não da conta corrente, mas da disponibilidade psicológica para o endividamento.
Geralmente ele pede dinheiro emprestado para pagar outro empréstimo e assim vai ad eternum. Provavelmente ele não percebe (nem admite) que é um peso desagradável para toda a família e, em particular, para o parceiro que, de uma forma ou de outra, vai ter que arcar com as despesas impensadas dele.
Aqui nos interessa pensar outra coisa: o gastador é normalmente uma pessoa insatisfeita que, como um criança, quer preencher o álbum de figurinhas para, em seguida, comprar outro e começar tudo de novo. Há um buraco enorme dentro dele que precisa ser preenchido e, por isso, ele compra coisas e mais coisas, sem precisar da maioria, e sem poder pagar também a maioria.
Se. além de gastador, ele for também um glutão, o tipo está perfeitamente caracterizado. Ele quer devorar o mundo pela bolso e pela boca, porque tem medo do vazio. E teme o vazio interno, mais do que o prato vazio. Ao adquirir coisas, ele se sente momentaneamente satisfeito, mas como coisas de fato não preenchem o vazio interno, é só uma compensação, que passa em pouco tempo. Então ele precisa fazer mais compras, como um viciado que não consegue mais viver, senão sob o efeito da droga.
Ao contrário do que a palavra poderia sugerir, o gastador não é aquele que “gasta” a vida, o que seria benéfico, mas o que, iludidamente, tenta aprisiona-la em bens materiais. E ele, como o menininho do álbum, se senta frustrado diante das páginas completas com a sensação de que a posse daquele objeto é totalmente inútil. Por isso aprender a lidar com o dinheiro não é uma questão só de finanças domésticas ou de planejamento, mas de nossa relação com o mundo.


Katia Sarkis

segunda-feira, 8 de junho de 2009

A DESCULPA ESFARRAPADA

CRÔNICA 56




Uma vez uma senhora me disse que não tinha comprado um imóvel durante toda a sua vida, porque o dinheiro que juntara ela gastou adquirindo um piano para sua filha, quando ela estava com 10 anos. Não sou especialista em pianos, mas acho que o piano na sala de estar não custa um apartamento. Imagino que ela deva ter dito sempre isto para sua filha, desculpando-se em parte por não lhe dado uma casa, e criando-lhe um sentimento de culpa, pois os pais abriram da casa própria para que ela pudesse estudar piano.
A filha, ainda bem, não me pareceu culpada. O fato é que a mãe sempre morou com ela e por ela foi mantida. Não por ela ter lhe dado um piano no início da adolescência, mas simples fato de que a mãe jamais trabalhou. A contribuição da presença da mãe em sua para a separação é tema de outra crônica, que não faremos agora.
Interessa-nos no momento pensar como alguém fantasia uma justificativa por não feito algo. Ora, a maioria dos brasileiros não tem casa própria ou mora em um barraco por uma razão simples: recebe um salário baixo, que não lhe permite adquirir um imóvel, nem financiado. A senhora da história não é exceção, mas a regra. E por isto ela não tem do que se envergonhar. Talvez devesse se envergonhar de nunca ter trabalhado e, conseqüentemente, não ter tido nem um salário pequeno.
É claro que ninguém acredita na escolha do piano no lugar do apartamento, mas ela repete para todos, como se não fosse absurda. Não queremos aqui julgá-la, mas lamentá-la. Esta senhora, devido à idade, não mudará mais. Aqui ela aparece só como um exemplo. De alguém que fantasia, e se desculpa, sabendo que a sua desculpa é uma mentira. Mesmo assim, prefere a mentira à verdade desagradável.
Temos que evitar as desculpas, as fantasias e as mentiras. Por mais que finjamos e finjamos que os outros acreditam em nossas mentiras, uma vida falsa não é uma vida boa. Desculpas esfarrapadas como esta do piano só fazem com que os outros nos olhem com pena. No lugar de pensar que ela foi uma mãe tão dedicada que se sacrificou deixando de ter um imóvel para comprar um piano para a filha, pensam que ela é uma pessoa mentirosa e manipuladora, quando não senil, por causa da idade.
As desculpas, com a intenção de esconder algo, na maioria das vezes funcionam ao contrário e revelam mais ainda. Se esta senhora não tivesse tocado no assunto, duvido que alguém perguntasse a ela por que nunca teve um imóvel. A sua fala sobre a não aquisição da casa própria na verdade era a fala sobre outro tema: o da mentira. O subtexto desta fala não é “olhem como sou uma mãe zelosa e desprendida”, mas “olhem como sou medíocre e como me valho de artifícios frágeis para enganar os outros.
Pense se você faz o mesmo. Você costuma criar histórias para encobrir fatos que, embora verdadeiros, não lhe refletem uma boa imagem? Será que não é preferível olharmos como realmente somos e a partir daí buscarmos mudar algo em nós para melhor a fantasiarmos e ficarmos sentados fazendo um esforço interno para acreditarmos em versões falsas sobre a nossa vida?
Um filósofo já disse certa vez que o “homem está só e sem desculpa.”


Katia Sarkis



























sábado, 6 de junho de 2009

O DIFÍCIL EXERCÍCIO DE PERSEVERAR

CRÔNICA 55


Encontrei com um amigo caminhando no calçadão. Deu só um “olá”, porque estava fazendo um exercício que exigia velocidade, para ser útil à saúde. Não podia parar e interromper a eficácia da caminhada naquele fim de tarde. Apenas me disse que, como há 15 dias não fazia exercício, tinha que caminhar com rigor para compensar a inatividade.
Ora, o exemplo não é único. Aliás, é bem comum quando se trata de dietas. Os gordinhos, culpados, escolhem um dia para fazerem dieta e se esquecem dos outros seis dias na semana em que não tiveram o menor cuidado com a alimentação. De preferência, escolhem um momento em que estão fazendo a refeição com outras pessoas, para que haja testemunhas de sua “dedicação” à dieta. Mas, como a balança não se ilude com mentiras, o peso continua o mesmo ou até mais elevado.
A segunda-feira é o dia clássico para se iniciar uma dieta nova ou recomeçar um exercício. E neste dia juramos que não haverá interrupções, aconteça o que acontecer. Infelizmente, poucos conseguem manter a palavra. A maioria para, sempre com uma justificativa nobre.
Há os que compram um guarda-roupa esportivo para as aulas na academia ou os exercícios ao ar livre e se sentem atletas de triatlo. Ao final de um mês, verificam que usaram aquelas roupas novas só uma 5 ou 6 vezes e que elas estarão perfeitas por muitos verões.
O cuidado com os exercícios e a alimentação é fundamental para a nossa vida, mas não é só sobre isto que quero falar. Aqui eles aparecem como exemplos, verídicos e cotidianos. O que me importa é a pergunta:”Por que não damos continuidade ao que fazemos?”
Haveria explicações culturais dizendo que o latino (e, se brasileiro, pior ainda) tem dificuldades de disciplina e perseverança? Ou é pura coincidência de que tantos indivíduos tenham a mesma conduta? Ou isto acontece mais em cidades litorâneas, como o Rio, do que em outras metrópoles, como São Paulo?
Especulações, sérias ou simplórias, podem ser feitas, mas nenhuma responde à pergunta. E na falta da resposta, que talvez também seja pessoal, vale lembrar que devemos enfrentar a nossa incapacidade de perseverar, mantendo um hábito saudável, e de não usarmos desculpas para tudo que não fazemos.
Mais exaustiva do que uma aula de ginástica na academia ou uma caminhada no calçadão é a batalha diária com nós mesmos. Os resultados na vida são como os das dietas: só aparecem, se houver determinação e continuidade em nossos atos. Viver não é uma atividade mensal, quinzenal ou semanal. Mas diária.

Katia Sarkis











quinta-feira, 4 de junho de 2009

ALGUMAS COINCIDENCIAS, DIGAMOS ASSIM


CRÔNICA 54


Em uma roda de amigos, um comentou que recebeu uma intimação de 20 mil reais por uma fiança que assinou para que um conhecido pudesse alugar um apartamento. Todos lamentaram o fato e três deles até disseram a mesma coisa: que isto era uma lição para ele não ser mais fiador. Ora, ele indagou se ser fiador era alguma coisa errada que, portanto, ele teria que pagar por um erro cometido. E se havia alguma lição no caso, seria a de não ajudar os outros, o que não seria uma boa lição.
A conversa continuou no bar e não se falou mais no assunto. Com o tempo esqueceram-se de perguntar se o amigo pagara de fato a fiança ou não. Como no jornal, uma notícia substitui a outra e em pouco tempo nos esquecemos do que foi manchete há um mês. É claro que o fiador não se esqueceu. Ao contrário, vivia sob a ameaça de ter que fazer um empréstimo bancário para pagar uma dívida alta que não era sua. Mas, como disseram alguns de seus amigos, ele era culpado por confiar no semelhante e por ter ajudado alguém.
Aqui cabe a pergunta se a fiança é uma coisa errada, por que permanece como instituição para os contratos de aluguel? Por que juízes e advogados, que sabem melhor que se trata de uma prática nociva, não extinguem com tal instituição, criando um seguro obrigatório, por exemplo?
Alguns meses se passaram e encontro com o meu amigo fiador. Estava mais aliviado, pois no último momento um parente do inquilino devedor lhe emprestou dinheiro para o pagamento do débito, mas ele preferira não comentar o assunto com mais ninguém, decepcionado com as opiniões que ouvira das pessoas com quem conversara sobre o caso. Disse que alguns familiares, amigos e colegas de trabalho sempre diziam que ele fora ingênuo e que não deveria ter aceito ser fiador. E que aprendesse daquele dia em diante a não assinar mais nenhuma fiança. Por isso, não comunicou a ninguém o desfecho do caso.
Não sei o que aconteceu na família ou no trabalho, mas na nossa roda de amigos comuns, verifiquei certas “coincidências” nos últimos dois meses. Um amigo teve que ser internado às pressas para um tratamento não coberto pelo plano de saúde; outro teve um problema com o carro e ele ainda não tinha renovado o seguro; e um terceiro teve problemas no seu pequeno comércio. Quando, sem querer, pensei sobre estes casos, constatei que o “prejuízo” deles era parecido com o do meu amigo fiador. Não contei a “coincidência” para nenhum dos quatro, até porque poderia causar constrangimentos. O fato é que esta história recente, ainda que verdadeira, me soa como uma parábola.
Não sei bem o que esta parábola significa, ou qual a sua lição. Quem sabe o leitor a tenha compreendido melhor do que eu?

Katia Sarkis










terça-feira, 2 de junho de 2009

O QUE É PROBLEMA?

CRÔNICA 53


Costumo dizer que uma coisa é cara ou não, em função da percentagem que ela representa de seus rendimentos. Logo 100 reais para quem recebe salário mínimo é uma quantia elevada, mas para quem recebe 100 salários mínimos, é insignificante.
Bem, não é de questões financeiras que trata este texto. O parágrafo inicial é só um exemplo para reflexão. Quero pensar sobre o que é problema. Esta semana recebi várias notícias de pessoas próximas que são problemas. Um perdeu um jovem filho afogado; outro descobriu que tem um tumor no cérebro e tem que operar com urgência; outro soube que mulher o está traindo há alguns meses; e outro recebeu uma cobrança indevida de 20 mil reais. Como dizem, a bruxa parece solta.
Seja lá como for, todos se vêem diante de perdas, e algumas irreparáveis. Qual é a pior? Talvez algum preferisse trocar de lugar com outro, pois a dor também é subjetiva e não há uma escala consensual de sofrimento. Diante destes fatos, cabe agora pensar na reação, como se reação fosse algo que pudesse ser racionalmente escolhido. Sabemos que não é.
De imediato, diríamos que perder dinheiro é mais fácil do que perder um filho, ou perder a mulher de sua vida, ou fazer um operação de risco. Já em relação aos outros fatos não saberíamos escolher, pois as vidas e seus valores são bem diferentes.
Há como superar certos problemas ou eles são insuperáveis? E o que é o dia seguinte a uma perda insuperável? Os meses seguintes? Os anos seguintes? A vida seguinte? A vida sempre é outra. Não há como não acusar o golpe da dor ou da perda. Não há como não mudarmos, como sermos os mesmos.
E neste momento que surge o verbo refazer, ou refazer-se. Mas não é fazer a mesma coisa de novo, como se fosse um exercício de matemática cuja resposta encontrada não era a certa. Refazer-ser é fazer-se outro, embora o mundo do lado de fora seja o mesmo. A surpresa dos golpes mencionados acima nos desarma e nos faz mais frágeis para enfrentá-los.
Para os outros, somos os mesmos. De um modo geral, nos consolam, mas não percebem que formos obrigados a mudar. E esta mudança (ou reação) é algo que nos foge, que foge ao controle da razão. Pode ser que a vida tenha plasticidade e se acomode a novas formas, mas a aparência de uma nova forma nem sempre é muito agradável.

Katia Sarkis








sexta-feira, 29 de maio de 2009

TRINTA ANOS ESTA NOITE


CRÔNICA 52



Mais um casal se separa. Depois de 30 anos de casados, eles vão repensar a vida a dois,de outras formas. Para os amigos, não foi surpresa, Aliás a surpresa era o fato de não terem se separado há muito tempo. Há diferença cultural entre os dois sempre foi grande e, com o passar do tempo, só aumentou. Ele é atualmente doutor em Sociologia e ela, prendas do lar. Os amigos estranhavam a relação e comentavam as diferenças entre os dois, que no dia a dia se evidenciavam. Por educação, evitavam certos assuntos na presença dela, para não deixá-la constrangido, porque ele (todos notavam) ficava embaraçado com a falta de cultura da mulher. Já ela não se importava e acusava os amigos do marido de chatos intelectuais. Cuidava apenas de receitas culinárias e observações sobre telenovelas.
Agora ele acordou e foi embora. Como um marido do tipo antigo, deixou o apartamento e a maior parte de seu salário para a ex-mulher e seu casal de filhos, que, embora adultos, ainda dependem dele. É sempre uma questão de pagar um preço. Se permanecesse em casa, depois do rompimento, talvez não tivesse outra oportunidade de viver a própria vida e se acomodasse àquela relação insatisfatória. Indo embora, se vê como um jovem e seus problemas: procurar um pequeno apartamento, mobiliá-lo e viver com pouco dinheiro, mas, em compensação, sentir-se livre e capaz de ter um relacionamento mais maduro e mais feliz.
Ela não queria a separação, mesmo sabendo que ele já havia se envolvido com outro pessoa. Parecia que não sabia o que fazer, sem o “casamento”, ainda que este obviamente já havia acabado. Era um personagem sem peça, sem saber qual a deixa e qual a fala seguinte.
Não duvido da sinceridade de seu sofrimento. Acho até bastante razoável que entre em depressão e que procure fazer análise. Só temo que, com a pensão e a casa, ela permaneça a mesma, ou seja, não seja responsável por si mesma, como não foi durante os 30 anos de casamento. O marido foi embora, mas o pai, não.
É claro que em uma relação a dois não pesa só o nível intelectual das pessoas, mas, quando este é muito diferente, é bastante difícil que o casal se complete. Quando ele reclamou que, durante este tempo todo, ela jamais se interessou por algo de seu trabalho, ela simplesmente respondeu que o trabalho era dele, não dela, e que ela não tinha tempo para isto, pois tinha que lavar, passar, cozinhar. Ora, para nós, seus amigos, ele sempre pareceram ter uma relação anacrônica, fora dos padrões de época.
Que sejam felizes é o que desejamos, mas sabemos que agora inicia-se uma talvez longa estrada.




terça-feira, 5 de maio de 2009

QUEM RECLAMA JÁ PERDEU.



CRÔNICA 51

Há uma frase do futebol que deve ser da década de 40 ou 50, que dizia o seguinte:”Quem reclama já perdeu.” Vamos devagar. A frase foi dita para jogadores de futebol em relação a reclamações feitas com o juiz, o que no máximo resultava em expulsão. Ou seja, reclamar com o juiz é sempre um tiro no pé. É claro que em outras situações devemos reclamar, mas reclamar não só verbalmente, e, sim, agindo. Motivos para reclamar dos governos não nos faltam e como cidadãos devemos protestar, sim.
Lembrei-me desta frase por outra razão. Encontrei-me ontem com um amigo que só vive reclamando, e, pior, repete as reclamações todos os dias.Ele funciona automaticamente, basta ouvir a palavra trânsito e ele despeja um discurso; se ouvir a palavra dinheiro, lá vem outro discurso...Caso no dia seguinte, eu me encontre com ele, a lenga-lenga será a mesma. Todos implicam com ele, irritam-no para que ele inicie a infindável lamúria, só que ele, acredite se quiser, não percebe.
Há dois temas que o incomodam mais: trabalho e dinheiro. Primeiro ele abomina trabalhar, tanto que tem um emprego ao qual vai só três ou quatro manhãs. Faz tudo de qualquer jeito e falta muito, é claro. Na seção todos o julgam um mau profissional, mas como ele é simpático (apesar de reclamão), os colegas o tratam bem. Ele não sabe que é visto como personagem, com as mesmas falas, as repetidas marcações de cenas, o exaustivo enredo
Reclama dos chefes diariamente, com bordões que criticam o departamento do tipo “isto não tem jeito mesmo”, “Isto só acontece aqui”, “Não dão condições decentes ou dignas de trabalho”...Na verdade ele quer justificar o fato de trabalhar mal e pouco, como se a suposta (e não verdadeira) má administração dos funcionários superiores o inocentasse de seu desleixo e de sua falta de profissionalismo. Ele precisa acreditar que o país vai mal, que está à beira do abismo, para explicar o fato de ficar todas as tardes e noites sem fazer nada, fumando e vendo televisão.
Quando o vejo, lembro-me sempre desta frase: “Quem reclama já perdeu.” A impressão que tenho é que perdeu mesmo. Primeiro perdeu o tempo reclamando à toa; depois porque, embora não seja o caso de ser expulso pelo juiz, sua reclamação também é inútil. Sua vida só sai do lugar, quando algum parente ou amigo o ajuda, pois se dependesse só dele, sua vida seria a imagem de um sujeito de camiseta e bermuda em frente a um canal de esporte das 13h às 24h.
Você gostaria de ter alguém assim na sua equipe de vôlei de praia? De modo algum, não é mesmo? E a seu lado, como marido? E em sua firma, como sócio? E em sua associação de bairro, como companheiro? Não, não e não...
Espero que você não seja do tipo reclamador, desses que, independente do resultado da partida, sempre perdem.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

QUE TAL AGORA O VERBO PERSEVERAR?



CRÔNICA 50

QUE TAL AGORA O VERBO PERSEVERAR?


Não, não se trata de aula para enriquecer o vocabulário, mas o verbo é este mesmo: perseverar. É menos usado do que o da crônica anterior, o iniciar, por uma razão simples: é mais difícil ainda. Significa continuar, não desistir, ir sempre em frente, não importa o que aconteça. Se recordamos alguns exemplos cotidianos citados no outro texto, veremos que iniciar a dieta é importante, mas não basta, se três dias depois formos a um aniversário e a interrompermos; iniciar a arrumação dos papéis no escritório é bastante proveitoso, desde de que no terceiro dia de trabalho não abandonemos pilhas no canto da sala. E por aí vai. Dar continuidade a uma tarefa até completá-la é fundamental, pois em certos casos não terminar um serviço ou não fazê-lo é a mesma coisa. Pense em dois túneis de mil metros: um sequer foi iniciado e outro foi feito até o nongentésimo, nonagésimo, nono metro. Na prática, não há diferença entre eles, pois nenhum nos levou ao outro lado.
Em reformas é muito comum operários que vão embora sem terminar o que foi programado, obrigando o dono do imóvel a contratar outra equipe. Talvez os engenheiros saibam responder por que isto acontece, talvez não. O fato é que há situações em que a tônica é o abandono, a interrupção do serviço. No caso de obras, os operários não se sentem responsáveis por ela e, portanto, nem pensam o que abandoná-la significa. Este não é o nosso caso. Nós somos responsáveis por tudo em nossas vidas, pelo que escolhermos fazer, pelo que fazemos e pelo que abandonamos.
Há a síndrome da não realização, do abandono. Muitas pessoas têm o hábito de iniciar coisas e não terminá-las. Quantas pessoas você não conhece que já se matricularam dezenas de vezes em um curso de Inglês e não concluíram nenhum. Há sempre uma boa (boa?) razão para mudar de curso ou não se matricular no módulo seguinte. Mas um dia, como eles costumam dizer, eles terminam.
São pessoas que exercitam com frequência a frustração. E talvez nem percebam em suas cegueiras que os outros, quando descobrem esta característica, se afastam em certas ocasiões. Você faria alguma parceria ou sociedade com alguém que tem fama de abandonar as coisas? Se você for sensato, é claro que não.
Perseverar é o verbo do dia a dia, um verbo vital, que nos exige algo muito difícil que é a disciplina. Sem autodeterminação, não somos o que somos, somos o que o acaso nos leva a ser. Não temos lugar de chegada, apenas chegamos a um lugar qualquer.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

UMA NOVA CEGUEIRA


CRÔNICA 49


Fui ao correio enviar alguma correspondência, e observei um casal entrar e apanhar a senha. Quando o letreiro anunciou o próximo número,eles se dirigiram à funcionária, que, olhando-os, perguntou por que eles tinham atendimento preferencial. O homem disse que não tinha e ainda levou alguns minutos para entender que ele havia apanhado a senha para atendimento preferencial, isto é, para deficientes, grávidas e idosos, e não a de atendimento normal, que era o caso dele. Esclarecido o fato, o casal foi pegar outra senha e ir para o final da fila.
Por coincidência fui atendida mais tarde pela mesma funcionária. Então lhe perguntei se casos semelhantes ocorriam com frequência, se as pessoas pegavam o tipo errado de senha, por distração e não por má fé. Ela disse que sim, que isto acontecia muitas vezes todo dia, embora o cliente que não esteja indo pela primeira vez a uma agência de correio saiba do uso das senhas e de sua diferença. Mesmo que fosse pela primeira vez, acrescento eu, está claramente escrito que é preciso apanhar uma senha e qual é o tipo de senha para cada pessoa. Em não se tratando de analfabeto, não há por que não agir de acordo com as instruções.
O fato em si não é grave nem traz maiores consequências. Só serve para ilustrar uma conduta que tem me chamado muito a atenção: muitas pessoas se negam a ler as mensagens escritas na vida diária. Ora, como estabelecer a comunicação com os outros, se não usarmos a palavra escrita? Como o usuário vai saber qual a plataforma dos ônibus para São Paulo, se não houver uma placa óbvia com o nome da cidade?
O que faz um homem que não está grávido, não é deficiente, nem idosos apanhar a senha indicada para estes três casos. A resposta distração é muito fácil e não me satisfaz. Acho que, mais do que distraído, ele não “vê”, ele não quer “ver” o que está escrito, como se a palavra não lhe dissesse respeito. Receio que haja uma doença da não leitura, uma fobia da palavra. Não digo que o brasileiro não gosta de ler livros, o que já é uma verdade conhecida. Digo mais, que ele não gosta de ler palavras, estejam onde estiverem, inclusive nas ruas de sua cidade.
Será que toda agência teria que dispor de um funcionário para abrir a porta e colocar na mãozinha de cada usuário a senha adequada, por ele ser incapaz de perceber um texto escrito e de lê-lo? Além da famosa falta de hábito de leitura de textos literários, há uma falta de hábito da leitura de mensagens que só faltam saltar a nossa frente. No metrô, em todas as saídas várias pessoas saem por onde há escrito em letras garrafais ENTRADA. Todos os dias quando passo, paro para observar o mesmo fenômeno social. Como não acho que seja o caso de distração apenas ou de pura falta de educação, poderia chamá-los metaforicamente de cegos ou analfabetos. Mas também não acho que seja o termo apropriado.
Na verdade ainda não sei como denominar esta não leitura, já que não penso que seja só falta de atenção coletiva. De qualquer forma, o fato me parece sério, porque imagino que, em outras situações bem mais importantes da vida, estas pessoas também se neguem a receber a comunicação dos outros. As relações assim correm o risco de se parecerem com o antigo quadro humorístico de duas velhinhas surdas, que sempre respondem a perguntas que não forem feitas.


Katia Sarkis

quarta-feira, 15 de abril de 2009

NÃO SE AUSENTE!


CRÔNICA 48


Tinha uma reunião marcada para às dez horas de ontem com quatro amigos. Para facilitar, seria num café que fica no andar térreo do local onde dois deles trabalham. A reunião era para discutir a proposta de um trabalho em conjunto, fora das atividades normais de cada um dos cinco. A princípio todos aceitaram entusiasmados e acordamos de levar já por escrito algumas idéias e projetos. Seria a primeira reunião informal e receberíamos um organograma feito por Cláudio, que tem a fama de ser o mais organizado de nós.
Às dez e meia, iniciamos a reunião, eu e Paula, já que Cláudio não pôde descer de sua sala; Marta telefonou avisando que só poderia ir às 13 horas; e Diogo simplesmente não apareceu. Depois dos 15 minutos de tolerância, típicos só de nossa cultura, iniciamos a pauta, feita na hora, já que o organograma cuidadoso de Cláudio não conseguiu descer sete andares para se sentar à mesa conosco.
A primeira proposta aceita por unanimidade foi o de não chamarmos mais Diogo para a nossa “sociedade” e imediatamente telefonamos para outro amigo de profissão e deixamos recado em sua secretaria eletrônica para que entrasse em contato o mais cedo possível para discutirmos um trabalho em parceria. Para Cláudio e Marta, oferecemos outra oportunidade. O não comparecimento, sob qualquer motivo, implicaria o desejo de não participar do grupo. Como terceiro tema da pauta, discutimos a possibilidade de fazermos o serviço em dupla, desde que certas adaptações fossem feitas.
Do modo como falo, pode parecer que agimos com rigor, mas não é verdade. Somos amigos há pelo menos 12 anos e já nos conhecemos o bastante para avaliar se a parceria vale a pena ou não. Quando o possível parceiro falta à primeira reunião, ele já respondeu que não vale.
Saí do café lamentando o “desencontro” e pensando principalmente em Diogo, que na véspera me ligara confirmando a sua presença e dizendo da satisfação desta oportunidade de um trabalho em conjunto. A retrospectiva da conduta de Diogo lhe é amplamente desfavorável. Em sua repartição há muito tempo não é mais respeitado e só não é despedido porque é funcionário público. Mas a amizade faz com que nos lembremos dele para festas e até para convidá-lo para serviços avulsos, embora saibamos de sua irresponsabilidade. Só que agora trata-se de um proposta de trabalho séria demais, para corrermos o risco de por tudo a perder por causa de alguém que não cumpre horários nem compromissos.
O curioso é que Diogo é quem mais reclama de falta de dinheiro, de necessidade de free lancer, e, quando surge uma ocasião, ele simplesmente não vai. Certamente ele não sabe que sempre que seu nome é mencionado, há alguém para se lembrar de sua irresponsabilidade, de suas faltas, de seus atrasos, de suas omissões. Vai morrer sem saber por que está cada dia mais só, mais abandonado pelos a- migos. Talvez julgue que o “destino” lhe é adverso, como se não fosse ele quem fizesse tal destino.
Quando a pessoa não comparece à própria vida, o mundo ao redor também se ausenta.

domingo, 12 de abril de 2009

A VIDA É HOJE!


CRÔNICA 47

Lembrei-me da frase de John Lennon, muitas vezes citada, de que “vida é o que acontece, enquanto fazemos planos para o futuro”. Primeiro, não quero dizer com isto que não devamos pensar no futuro ou que não devamos fazer planos. Ao contrário, se não nos dedicarmos agora a construir o dia seguinte, aquilo que no momento chamamos de futuro jamais chegará. Em um exemplo simples, se não economizarmos durante dois anos para adquirimos a máquina de que necessitamos em nosso serviço e que nos ajudará a ganhar mais dinheiro, não a teremos daqui a dois anos, ou seja, neste tempo futuro visto de hoje.
Pessoas de menos instrução têm, regra geral, mais dificuldade de visualizar o futuro e de administrar o presente para que amanhã não tenham certas dificuldades. Outro exemplo simples, muitos operários recebem o salário semanal e não mensalmente, como a maioria, pelo simples fato de que não sabem lidar com o dinheiro. Como gastam tudo na mesma semana, se recebessem o salário de uma vez só, passariam três semanas por mês com problemas financeiros. Esta forma de pagamento, principalmente com operários de obra, mostra bem a má relação entre tempo e dinheiro.
Voltemos ao tema. A vida não pode estar num ponto futuro, na dependência do que não existe hoje. Temos que viver o presente e, ao mesmo tempo, fazer o futuro. Não há jogo de palavras aqui. O presente não pode se negar em nome de uma vida que só vai acontecer daqui a tanto tempo, isto é, se outras coisas acontecerem também. Supomos que eu só seja feliz, se estiver formado em Direito, logo durante os cinco anos do curso, eu estarei em estado de infelicidade, não-felicidade ou de pré-felicidade, pois ainda não sou advogado.
É fácil ao lermos este hipotético caso, acharmos um absurdo colocar a felicidade (ou outro nome que queira usar) como dependente de um diploma de Direito ou do exercício de sua profissão. Podemos admitir que eu me sinta melhor depois de formado, e melhor ainda, se realizado na profissão escolhida. Isto é normal. Só não podemos suspender o tempo e não “vivermos” durante cinco anos, ou, caso não consigamos passar no vestibular ou se, mais tarde, não consigamos concluir o curso, nossa vida estará definitivamente perdida?
E nós, no dia a dia, estamos adiando a nossa vida em nome de algo, supostamente melhor, no futuro? Será que não estamos nos descuidando do presente porque ainda não temos ou não somos alguma coisa. A vida não pode esperar. Até porque não sabemos até quando ela vai. Quanto menos fingirmos que não sabemos que ela é passageira, nós a viveremos melhor, com o que tivermos e formos no momento.
Que tal não nos adiarmos mais? Que tal sermos o que queremos agora? Não podemos pedir aos outros que nos esperem, nem ao tempo que nos aguarde lá fora. Abra já a sua porta para o presente.

Katia Sarkis

terça-feira, 7 de abril de 2009

OUTRA VEZ E AINDA SEPARAÇÃO

CRÔNICA 46


Normalmente uma separação não ocorre da noite para o dia. Os casais se separam aos poucos e às vezes levam até anos se separando. Ou seja, não é fácil. É a primeira causa de depressão, superando mesmo a viuvez. Logo devemos ser tolerantes com aqueles que se encontram em pleno processo de separação. Por exemplo, usar a expressão adolescente “a fila andou” é de extremo mau gosto. E certamente o que foi deixado não vai gostar de ouvir que o seu relacionamento é objeto de tal comparação.
Mesmo quando a pessoa sai de casa “para comprar cigarros e não volta nunca mais”, provavelmente houve indícios de que ela iria embora, ainda que não desta forma abrupta. Acontece que muitas vezes um dos dois, ou até os dois, não quer reconhecer que o relacionamento está se modificando, isto é, acabando, e finge que as coisas vão bem.
Lembro-me da velha história da mulher que sempre servia o peito do frango para o marido, achado que era o seu pedaço favorito, e ele aceitava, porque achava que sua mulher preferia a coxinha. Os dois pensavam que estavam se sacrificando para agradar o outro, quando na verdade estavam de fato abrindo mão da parte predileta do frango e, ao mesmo tempo, passando a imagem de egoístas. Isto é um claro exemplo de falta de diálogo, porque os dois “supunham” mas não conheciam as preferências de quem está a seu lado há anos.
Achamos que fazemos algo para a felicidade do outro e nunca perguntamos se era isto ou aquilo que o outro queria. Mas como ele não vai gostar do bife de fígado que preparei com tanto carinho? Só que muita gente não gosta de bife de fígado, feito com ou sem carinho. Bifes e metáforas à parte, temos que perguntar sempre o que o outro quer, o que ele deseja, e não impor o nosso gosto ou uma preferência do senso comum. Ora, todo carioca gosta de praia, como ela não vai querer dar um mergulho no Recreio?
Outra coisa usada erradamente é a estatística: se a os casais têm em média três relações por semana, se temos três ou quatro estamos dentro da média; se os casais saem para lazer só nos fins de semana, por que teríamos que ir ao teatro numa quinta-feira? Ora, a vida não cabe em estatísticas nem em médias aritméticas. Imagine ter que assistir aos programas televisivos que abomino para poder estar na média ou ter que ouvir certo tipo de música só para estar de acordo com as estatísticas?
Isto só para falar de coisas pequenas. Imagine termos que mudar a nossa conduta, os nossos desejos, porque a maioria pensa ou age assim? Logo é melhor conversar com o nosso companheiro e saber de
que ele gosta e não se espantar ou censurar se for algo bem diferente do que esperávamos. O outro não é obrigado a ser o nosso espelho.
Katia Sarkis



sábado, 4 de abril de 2009

NADA É GRÁTIS!


CRÔNICA 45


Há muito tempo eu percebi quase ninguém pergunta de onde vem o dinheiro para pagar qualquer coisa. A despesa sendo paga, estão todos felizes. E isto não quer dizer que a maioria das pessoas seja interesseira ou desonesta. Passo este tipo de análise aos terapeutas. A minha leitura é de outra ordem. Parece-me que a sociedade sofre de um “complexo de filho”, isto é, espera que o Grande Pai resolva todas as coisas, inclusive que pague as contas. Desdobrando ainda, diria que o mal é da falta de responsabilidade. Quem não é responsável não se preocupa em pagar nada, portanto a ele não interessa saber de onde vem o dinheiro.
Você já reparou que as pessoas aceitam dinheiro ou presente que estariam além da capacidade financeira do “anjo-da-guarda” sem se questionar como eles foram obtidos? Ficam satisfeitas e agradecidas e basta. Não digo que elas devessem se dirigir para o doador é indagar como ele, tendo um salário x, pode dar um presente tão caro. Mas que perguntassem a elas mesmas. A experiência, contrariando à lógica, me provou que a maioria não quer saber se é viável ou não alguém que, por exemplo, ganhe 3 mil reais tenha um carro de 100 mil. Se for o pai o autor de tal mágica, o filho se sentirá amada pelo “esforço” do pai por esta compra inverossímil e ainda esperará o tanque cheiro toda semana.
A sogra chama de inteligente, capaz ou bem-sucedido o genro que leva uma vida bastante acima de seu salário e de pobre coitado o outro que vive fielmente de acordo com os números de seu contracheque. Jamais passará pela cabeça desta senhora que seu genro tem uma atividade ilegal e lucrativa, além do seu emprego formal. E talvez não tenha mesmo. Mas esta não é a nossa questão aqui.
Coloco na mesa da discussão o fato de quase ninguém querer saber como as contas são pagas nem de querer pagá-las. Quando o assunto é dinheiro, há uma tendência a se esperar que o outro faça mais por nós do que nós estamos dispostos a fazer pelo outro. Isto acontece porque somos eternamente filhos imaturos e irresponsáveis?

KATIA SARKIS



terça-feira, 31 de março de 2009

A SÍNDROME DA FALTA



CRÔNICA 44

Encontrei no metrô com uma antiga colega de escola e logo me veio à cabeça um fato que a marcava em todas as turmas pelas quais passava: ela costumava faltar às provas em primeira chamada. Com o tempo, os professores, a contragosto, se acostumavam em ter que elaborar uma prova de segunda chamada para uma aluna, a mesma. É claro que ela não tinha noção do trabalho que dava aos professores, pois perdiam pelo menos uma hora fazendo uma prova só para ela. Hoje acho que o colégio deveria cobrar uma taxa de seus pais por esta costumeira prova extra. Acontecia que os professores, depois de saberem que se tratava de um problema psicológico, e constatarem de que era uma boa aluna, tinham tolerância e até gostavam dela.
Para os colegas ela foi sempre a aluna que faltava às provas. E fazíamos apostas todo dia de prova, mas era difícil alguém achar que, por alguma razão, ela viria àquele dia, contrariando a expectativa da turma e do professor. Apesar desta conduta, ela era querida por todos , por ser bastante educada e inteligente.
Tentamos em 15 minutos de metrô pó a conversa em dia. Onde está? O que tem feito? Terminou o doutorado? E a família? Trocamos telefone, e-mail, e deixamos no a perspectiva de um encontro para conversarmos melhor. Dias depois eu lhe telefonei e marcamos um jantar com mais quatro colegas da época. Ela ficou satisfeita com o telefonema e a oportunidade de rever a turma.
Dez dias depois, no restaurante, uma colega, a terceira a chegar, apostou que ela não viria, que ela decerto não perdera o hábito de faltar. Ao fim da noite, tive que dar o braço a torcer e admitir que a colega tinha razão. Ainda adolescentes sabíamos que aquelas faltas eram motivadas por problemas psicológicos, que não sei se foram tratados ou não. O que me parece claro hoje é que permanecem: esta colega tem a síndrome da falta. Jovem, faltava às provas; adulta, aos encontros. Diria mais, ela tem passado o tempo todo faltando à vida.
Talvez terapeutas chamem o fato de fobia, uma fobia crônica. Sem querer entrar em detalhes de nomenclatura, chamo de doença. E lamento, pois é uma doença que, sem manifestação visível, impede a vida. Apesar de ser ainda bem inteligente, aos 46 anos não trabalha
e nem sei se trabalhou um dia. Imagine algum patrão que aceitaria um funcionário que faltasse ao serviço com tanta freqüência e sem motivo.
Pensei em lhe telefonar para saber o que houve, por que não compareceu ao nosso encontro no restaurante etc. Mas não o fiz. Com o aparelho na mão, não consegui ligar. E supus que muitos amigos devem ter se afastado pela mesma razão. Quando as pessoas sabem que é uma “doença”, tornam-se mais compreensivas, mas depois, com o tempo, desistem da companhia. Infelizmente, a síndrome da falta não é um caso isolado. Ela acontece com muitas pessoas, embora nem sempre de modo permanente, o que mascara a conduta.
No outro dia em casa, parei me perguntando: será que eu também costuma faltar à vida? E com que freqüência? E em que situações?
Bem, responder a estas perguntas é o primeiro passo para pararmos de faltar.

segunda-feira, 30 de março de 2009

EU NÃO ESTOU OUVINDO O QUE EU ESTOU OUVINDO


CRÔNICA 43
Tenho um amiga que é vegetariana há mais de vinte anos, ou seja, há tempo suficiente para todas as pessoas de sua relação saberem que ela não come carne. Ela tem uma irmã que mora em uma cidade vizinha há três horas de viagem, a qual ela visita de vez em quando. Nestas ocasiões é comum fazer pelo menos uma refeição na casa da irmã, que por sinal é boa cozinheira. Só que a irmã sempre lhe oferece um prato de carne, como se ela não fosse vegetariana. Que a irmã faça carne não é problema, afinal ela cozinha para pessoas diferentes, o que ela não entende é por que razão a irmã insiste que ela coma carne, contrariando seus hábitos vegetarianos
A cena se repete, ela diz. Se a irmã lhe serve uma carne assada, por exemplo, ela agradece e recusa, perguntando se a irmã já esqueceu que ela é vegetariana. A irmã diz que é só uma vez e que não faz mal. Ou que ela pode fazer uma exceção e comer aquela carne que ela preparou com tanto carinho, especialmente por causa de sua visita. A irmã se mostra ofendida por ela não aceitar a carne assada ou diz que ela é mal educada ou ingrata, por não reconhecer o afeto da irmã.Algumas vezes acabaram discutindo e se aborrecendo.
Creio que esta história não seja incomum. Com certeza você conhece alguém como a irmã desta minha amiga. Ela, sim, é uma pessoa mal educada, pois, carnívora, não aceita que o outro seja diferente. Não reconhece que o outro tem direito a ter valores e princípios diferentes, inclusive alimentares.
O problema é simples, embora desgastante. Em toda refeição que as irmãs se encontram, há uma pequena ou não tão pequena discussão, por uma simples razão: uma das irmãs sofre da doença da não aceitação das diferenças ou do obsessivo desrespeito pelo outro, como queiramos denominar a estranha conduta da irmã que empurra um prato de carne para alguém que é vegetariano.
Embora este caso não tenha dimensões grandiosas, ele é um exemplo de como muitas vezes não ouvimos os outros pelo simples motivo de que não queremos ouvi-los. A irmã carnívora desta história verídica deve agir da mesma forma em outras situações, provavelmente mais sérias. Deve ser o tipo de mãe que tenta influenciar a carreira dos filhos ou escolher as suas companhias, ignorando suas aptidões e desejos. Deve ser o tipo de mulher que se veste de lingerie negra e põe um perfume especial para seduzir o marido, ainda que ele diga há vinte anos que não se sente estimulado por nenhum tipo de lingerie e que abomina qualquer perfume.
Não percamos mais tempo com esta irmã, porque ela provavelmente é pessoa que inverte as situações e deve dizer que a irmã vegetariana não reconhece seu afeto, que seus filhos não percebem que tudo que ela faz é para o bem deles e que o marido é um insensível porque não vê o romantismo de sua lingerie e o aroma irresistível de seu perfume.
Temos que ter cuidado para ouvirmos exatamente o que os outros dizem e não ouvirmos o que gostaríamos de ouvir. Respeitar as diferenças é fundamental ou qualquer convívio se torna inviável.

sexta-feira, 27 de março de 2009

O PREÇO DA RESPONSABILIDADE



CRÔNICA 42


Achei que valia a pena me ocupar mais da história da última crônica. A mulher que não viajava porque não gostava de pagar as passagens e as diárias dos hotéis me lembra temas já vistos por nós. Entendamos melhor: a mulher pertence à classe média, profissional assalariada, moradora em um bom apartamento de um bairro valorizado na zona sul da cidade, com dinheiro suficiente (fruto de seu trabalho, é bom que se diga) para suas despesas, incluindo viagens no país e no exterior. No entanto, ela se mantém em casa por anos porque, segundo seus pensamentos, ela não poderia usar seu dinheiro com tais gastos.
Um psicanalista talvez visse na sua avareza uma avareza maior, a avareza vital. Ou, mais simbolicamente, visse em sua mão fechada o movimento de retenção, isto é, de não movimento. Ora, não se trata de uma pessoa desocupada ou vadia, mas de uma trabalhadora, cuja renda mensal lhe permite uma vida razoável, bem acima da significativa maioria do país. Entretanto, ela se nega a pagar as suas contas, como se o dinheiro que saísse significasse algum tipo de perda.
Uma vez que não sou psicanalista, como vocês sabem, a minha leitura é outra. Acredito até que a mulher não visse avareza na sua avareza e até se surpreendesse, quando em uma sessão de análise, ouvisse esta palavra. Nem diria que estamos diante de uma pessoa irresponsável, visto que trabalha diariamente e arca com as contas de sua casa. Diria que é irresponsável, sim, mas em sentido mais restrito, ou seja, é parcialmente irresponsável.
Sei que parece estranho, mas vamos lá. Se, quando está sozinha, paga as contas, o que a bloqueia, quando está acompanhada? Será que seria responsável por sua casa, mas não responsável pela relação? Parece provável.
Pagar as próprias contas (não as do casal) num hotel significaria assumir a sua parte na relação, e isto a assustava. Então ela escolheu não ter mais o prazer de viajar e até perder o prazer do companheiro, mantendo, assim, o dinheiro no cofre do banco, com o acúmulo de juros e correção, para, quem sabe um dia, ser feliz.


Katia Sarkis


quinta-feira, 26 de março de 2009

AMOR??? II


CRÔNICA 41


A história anterior me fez lembrar de outra, igualmente verídica. Trata-se também de um casal em um hotel de serra. Depois de uma semana aprazível com sexo, passeios, jantares românticos, piscinas, muito vinho e repouso, veio a conta do hotel. Quando ele a mostra, ela se recusa a pagar a sua parte. Então ele paga sozinho as diárias dos dois. Pegam as malas, entram no carro e voltam para casa. Ela se encontrava ofendida por ele esperar que ela pagasse a metade da conta; ele, decepcionado por ela não ter pago.
Era a primeira viagem do casal que, antes de iniciarem a relação, conversavam muito sobre viagens que ambos tinham feito, constatando facilmente que viajar era uma afinidade entre eles. Os dois, acredito eu, devem ter pensado que juntos fariam inúmeras viagens e que isto seria muito prazeroso.
Mas o que parece lógico nem sempre acontece. Eles não tinham conversado sobre como as viagens anteriores tinham sido feitas, porque nós sempre pensamos que o outro é igual a nós e, portanto, também viaja como nós viajamos.
Resumo da história: depois desta primeira viagem, o casal nunca mais saiu da cidade. Ele preferia não viajar a ter que pagar em dobro; e ela abria mão deste prazer a ter que pagar por a sua metade. Jamais voltaram a falar sobre este assunto. Não sei o que, no íntimo, cada um pensava do outro. Suponho apenas que ambos se sentiam incompreendidos e mal-amados. De qualquer forma, ficaram ainda mais alguns anos juntos.
A separação provavelmente não se deu porque só fizeram uma viagem juntos e, sim, porque tinham valores bem diferentes, como se vê na atitude dos dois diante da conta do hotel. Não foi uma conta que os separou, mas o que antecedeu à conta e à relação.
Se divergiram na questão de amor e de dinheiro, aproximaram-se quanto ao tempo: ambos o desperdiçaram.

Katia Sarkis

quarta-feira, 25 de março de 2009

AMOR???

CRÔNICA 40

Esta história aconteceu de fato há quarenta anos. O casal recém-casado foi passar alguns dias num hotel na serra. Quando estava na piscina, a mulher percebeu que havia esquecido a touca no quarto e pediu ao marido que a fosse buscar. Ele não quis ir e sugeriu que ela nadasse assim mesmo sem touca. Naquele momento ela se decepcionou, sentiu que seu casamento tinha sido um engano e que ele não a amava como ela supunha.
Soube da história muito tempo depois pela voz da mulher que, então madura, ria da tolice da jovem de vinte e dois anos. Só que era tarde, ele acreditou que o fato de não ir buscar uma touca era sinal de falta de amor. E dali em diante, ou seja, desde a primeira semana de vida conjugal, desconfiou de sua união. Não precisa ser muito esperto apara concluir que eles se separaram. Com dois filhos e dez anos de vida a dois.
A maturidade, ainda que louvável, não modifica a ingenuidade da juventude e seus equívocos. Qualquer um acharia razoável o fato de ele não querer ir buscar a touca e que isto não significa falta de amor, mas a jovem recém-casada, provavelmente educada em fantasias bizarras, pensou diferente e se desiludiu.
E se fosse o contrário. Se fosse ela quem se negasse a buscar o pé de pato dele, também seria sinal de desamor? Pelo jeito, ela não se fez esta pergunta na ocasião, se não teria visto facilmente como estava sendo infantil.
Não sei qual é a sua idade, pode ser vinte e dois ou cinquenta, ou outra qualquer. Até porque nem todo jovem é ingênuo, nem toda pessoa madura, esclarecida. Só convido a que pense sobre o que você chama de amor. O simples ato de ir buscar um objeto ou a sua recusa significa amor ou desamor? Espero que não.
Primeiro, ser prestativo não quer dizer necessariamente ser amoroso. Pode ser apenas uma característica, agradável para os outros, reconheço. Segundo, seria até muito fácil se amar alguém fosse só fazer favores, pois favores fazemos para colegas ou vizinhos e não temos este tipo de sentimento por eles.
Cuidado, pois, com o uso de substantivos abstratos, como amor. Eles servem para encobrir muita coisa diferente e distante. E em alguns casos até o contrário do que significam.

Katia Sarkis




terça-feira, 24 de março de 2009

VOCÊ VIVE A SUA VIDA? II


CRÔNICA 39

VOCÊ VIVE A SUA VIDA? II

Reunimos aqui algumas respostas: não, eu não tenho tempo; meu marido não deixa; meus pais me criaram para ser o que eles queriam ter sido e não foram; minha mulher exige que eu seja outro; meus filhos não me dão tempo; o salário é baixo; gostaria mas moro longe da capital; com a doença que tenho, não dá; não tenho dinheiro para ser o que quero; não tenho mais idade; sinto dificuldade de ser o que sou; não sei o que quero ser ou o que sou...
Você provavelmente identificou duas ou mais respostas como suas. Acontece que as pessoas se parecem: têm os mesmos problemas e eles têm as mesmas causas. O primeiro passo, ainda que óbvio, vale a pena ser repetido é você saber o que é ou o que quer ser. Não vale dizer que gostaria de ser bailarina, mas que, com trinta anos, não dá mais...
É claro que, como somos seres históricos, não podemos ser mais bailarinos com trinta anos e coisas semelhantes. Não podemos ser cultos, se aos 50 ainda somos analfabetos. O que somos (e o que podemos ser) no presente é resultado do que fizemos antes. Não dá para simplesmente apagar a história de nossa vida, como se fosse um desenho, e redesenhá-la. Isto não quer dizer que ser bailarino é a única opção da sua vida, visto que seu corpo já não permite mais que você seja um profissional da dança. No entanto, se for uma questão de prazer, você ainda pode ter aulas de balé e dançar por hobby.
Seja, portanto, realista. Diga o que você quer ser dentro de suas circunstâncias. O seu querer tem que ser verossímil. Isto é, tem que ser viável e tem que depender só de você. Você não pode desejar ser filho de senador, pois este desejo implica a vida de seu pai e o tempo, como é elementar, não retrocede.
Agora veja por que razões (geralmente é no plural) você não consegue ser o que você é. Escreva-as num papel. Seja honesto consigo mesmo: se forem dez, não escreva apenas sete. Depois pense como enfrentará cada uma delas. Sim, vai levar tempo. Talvez muito tempo, ou mesmo a vida toda.
Mas você pode começar já a dar um passo ao encontro de você mesmo. Lembre-se de que, sem este primeiro, você não alcançará o ducentésimo-trigésimo-segundo, por exemplo...

Katia Sarkis

segunda-feira, 23 de março de 2009

MEU REINO POR MIM MESMO


CRÔNICA 38


Se há uma pergunta que devemos nos fazer com uma certa freqüência (pelo menos de seis em seis meses) é a seguinte: É a minha vida a vida que estou vivendo?
Raramente a resposta é positiva, digo, inteiramente positiva, pois quase sempre estamos vivendo algo de vidas alheias. A partir da resposta (honesta, é claro), cabe a você fazer alguma coisa para se tornar mais parecido com o que você é.
Mais do que passar a vida em busca da felicidade - coisa, que, na prática, a maioria não faz mesmo – passamos a vida em busca de nós mesmos, de nossa identidade. Queremos ser o que somos. Eis o nosso mais justo desejo.
Primeiramente, temos que saber o que somos ou o que queremos ser ou, ainda, em quem queremos nos transformar. Além do mais, não somos os mesmos o tempo inteiro, pois ele passa e a vida se modifica. A história, que não é aquela matéria escolar que muitos ignoram, existe. E a história é acontecimento, mudança.
Se eu perguntar sobre os seus problemas, você responderá com rapidez e facilidade. Talvez até se estenda na resposta e faça uma lista, ou chore com pena de si mesmo. Mas agora que você já enumerou os problemas e apontou os causadores deles, que tal responder à pergunta inicial: Você está vivendo a sua vida?
E por que não? Você não pode delegar a outro que a viva por você, que seja feliz por você, que realize seus desejos por você. Não há substituto. Você é o único ator que pode representar seu personagem. E que bom que seja desta maneira!
A vida é, portanto, pessoal e intransferível.
Agora examine a sua resposta. Quanto mais longa, melhor, pois mais material você tem para a análise. O que o impede de viver a sua vida? A sociedade? O patrão? A família? O parceiro? Os filhos? A idade? O país?
Mudemos a pergunta: Por que você impede de viver a sua vida? O que faz contra você mesmo? Respire fundo, relaxe e responda.
Bem, agora a resposta ficou difícil de ser dita, como se você não a soubesse. Mas você sabe. Só você sabe. Vá, diga o que está fazendo para ser você mesmo? Esqueça os problemas e responda a você mesmo o que você tem feito para viver a sua vida? Quem sabe se, quando você encontrar a resposta, a maioria dos problemas diminua e até desapareça.

sábado, 21 de março de 2009

QUEM TEM MEDO DE SI MESMO?



CRÔNICA 37



Um amigo, leitor assíduo, me aconselhou procurar um analista, porque, segundo ele, eu tenho fixação na palavra responsabilidade. Quanto à análise, já faço e não penso em mudar de analista. Já quanto à responsabilidade, ela é mais, bem mais do que uma palavra que, por ventura, apareça com frequência nos meus textos. Não fiz a pesquisa, para comprovar estatisticamente que ela seja a campeã, mas espero que a observação deste amigo esteja certa. Diria que ela tem a ver com o meu tema preferido: o livre-arbítrio. Afinal, como pensar o homem sem pensar o livre-arbítrio?
Escritores ou não, todos nós temos as nossas obsessões, as nossas temáticas repetitivas nas conversas banais do dia a dia. Que a minha seja a responsabilidade é uma satisfação, e isto não me torna a pessoa mais responsável do mundo, apenas uma pessoa que pensa esta questão, por pensar sempre o homem.
Sem o intuito de “revidar” a observação, até porque ela me agradou, me perguntei se esta palavra incomodava ou não o meu amigo. Um analista, ao qual não o recomendarei, talvez pudesse fazer comentários mais esclarecedores, se soubesse que se trata de uma pessoa que, apesar dos 35 anos, ainda mora na casa do pai, de quem depende parcialmente para pagar as suas despesas.
O tema agora é outro. Por que será que às vezes as questões colocadas pelos outros que nos desagradam nós vemos como fixações, obsessões ou manias? Ou seja, como algo que foge a uma normalidade. De que estamos fugindo? Se não suportamos ouvir falar muito em responsabilidade, talvez sejamos irresponsáveis. Se nos incomoda tanto o tema da honestidade, talvez sejamos pelo menos um pouco desonestos.
Os nossos medos são muitos. O maior de todos é vê-los à nossa frente.


Katia Sarkis

sexta-feira, 20 de março de 2009

O AUGE É A DECADÊNCIA

CRÔNICA 36


Passeava com uma amiga pelo calçadão da orla, quando de repente ela me diz a seguinte frase: “Quando eu estava no meu auge...” Não fiz perguntas para não ser desagradável, mas fiquei intrigada com o que significava o tal auge. Parecia falar como uma pessoa pública, cujo “auge” é avaliado pelo sucesso de sua carreira, mas, em se tratando de uma pessoa comum, não entendi o que significaria auge.
Parece-me que bombardeados pela mídia sobre a vida de “celebridades” muitos de nós incorporam os padrões e os referenciais destas celebridades para suas vidas e usam expressões como o auge, o ciclo, a nova fase... Expressões comuns no discurso de um artista soam deslocadas na voz de um advogado, por exemplo. O que seria o auge de um professor? Ou a nova fase de um arquiteto? Ou o final de um ciclo de um bancário?
O fato de usarem tais termos é significativo. Estariam eles brincando de artistas, de personalidades públicas, como se estivessem falando para repórteres? De qualquer forma, o caso é sério e oferece muito material para os analistas. Não seria este discurso um modo de esconder (ou revelar) as frustrações e não realizações de quem o usa? Ora, eu finjo que tenho uma nova fase, que encerrei um ciclo, que tenho um auge etc...Ou seja, eu forjo uma identidade e uma história para mascarar as verdadeiras identidades e histórias que me são desfavoráveis. Como eu não fiz o sucesso que esperava, fabrico uma falsa história de sucesso ou fabrico desculpas razoáveis e até dignas de elogio por não ter feito o sucesso.
Digamos que eu justifique o meu não sucesso ou meu fracasso porque eu não quis me vender ao sistema, não me submeti aos desmandos do patrão, não prejudiquei a qualidade do meu trabalho, não abandonei a família, não trai princípios políticos ou religiosos.
A amiga em questão, embora tenha se formado em teatro, jamais atuou em peça alguma. Daí talvez falar como uma atriz de carreira, quando na verdade só trabalhou como funcionária pública, sem especificação profissional. Diria o analista que ela gostaria no fundo de ter sido atriz, mas, por alguma razão ou várias, desistiu da profissão. Insatisfeita com a atual atividade profissional, fala como se fosse a atriz que não foi e não é.
A fantasia nestes casos é mais do que explícita.
Mário de Andrade disse certa vez que “o auge já é a própria decadência”. Ele estava se referindo à literatura, mas a frase serve para qualquer situação. No discurso de minha amiga, o hipotético auge é a decadência da verdade e da autoaceitação. Daqui a 20 ou 30 anos, como será seu discurso? Se encontrar interlocutores novos, poderá fantasiar à vontade e criar histórias sobre sua vida que jamais aconteceram ou parecerá senil e louca para os conhecidos antigos.
O velho mote da vida que poderia ter sido e que não foi muito alimenta as conversas de velhos, estejam em asilos com outros velhos ou não. A vida não é recordada pelo que aconteceu, mas pelo que poderia ter acontecido. O velho tende a fabricar uma outra vida, como compensação pelo que não viveu.
Amigos, prestem atenção a seu discurso. Se você fala como se tivesse sido famoso um dia e não foi, cuidado. Você está se negando. Seja lá o que você foi ou é tem muito mais importância do que o ser que você não foi ou gostaria de ter sido. Viva a sua vida e não a sua hipótese.

quinta-feira, 19 de março de 2009

POR QUE SERÁ QUE AS COISAS NÃO DÃO CERTO?


CRÔNICA 35



Muitos passam a vida se lamentando, dizendo que não têm sorte e que nada dá certo. Acomodam-se à sina, ao destino que lhes coube, e se sentam em poltronas razoavelmente confortáveis e reclamam da vida conjugal, da família, da vizinhança, dos colegas de trabalho, do técnico da seleção e dos políticos. Nada fazem pelo mundo.
Ora, todos já se sentiram alguma vez (ou várias) traídos pela sorte, como um time que perde o jogo no último minuto. Levam a mão à cabeça e param perplexos como se não acreditassem que isto está acontecendo com eles. Lembro-me de que uma vez fiquei uns vinte minutos olhando para o lugar onde havia deixado o carro, sem aceitar que ele tinha sido roubado. Mas logo o meu carro! E ainda por cima um carro velho! Por que eu fui parar justo nesta rua?
O passo seguinte a uma decepção ou perda é normalmente não dar passo algum, ou seja, a inércia. E mais adiante, talvez a depressão. Às vezes, permanecemos desanimados e imóveis por meses ou até mesmo anos, presos às adversidades.
Nestas horas, surge a velha pergunta: Por que será que as coisas não dão certo? Normalmente não temos as respostas e, por não termos as respostas, continuamos fazendo as mesmas coisas de antes. É estranho fazer tudo igual de novo para obter o mesmo resultado negativo.
Por que nem sempre mudamos quando verificamos que algo não deu certo? Poderemos errar de novo, perder de novo, mas teremos tentado algo diferente.
Será que achamos que viver tem que ser um ritual de fracassos? Ou não admitimos nenhum tipo de mudança por alguma secreta razão? A verdade óbvia é que se formos pelos mesmos caminhos chegaremos sem dúvida aos mesmos lugares, aos quais não queríamos mais chegar.
Primeiro, troquemos a pergunta: Por que será que temos dificuldade de fazer as coisas diferentes? Talvez seja o caso de nos dedicarmos mais às nossas tarefas. Talvez até dobrar o esforço e o empenho, mesmo que os atuais já sejam bons. A vida é sempre também uma questão de exercício.

Katia Sarkis








quarta-feira, 18 de março de 2009

O TEXTO ERRADO NA CENA ERRADA

CRÔNICA 34

Tenho sido mediadora de um casal amigo em fase de separação, uma espécie de espiã dupla, infelizmente. É uma situação desagradável , da qual não consegui escapar, pois muitas vezes, ao fim de algum tempo, os dois se voltam contra o mediador, acusando-o de traição. Ou seja, eu corro o risco de ficar mal com os dois.
É só mais uma separação, dirá o leitor, que, dependendo da idade, já conviveu com muitas, além da própria. Primeiramente, separação nunca é só mais uma. Todas são difíceis, pelo menos para um dos dois. E segundo pesquisas na área médica, a separação vem em primeiro lugar como causa de depressão, superando inclusive a viuvez.
Mas não é exatamente da separação que quero falar agora, e sim da reação da minha amiga. Em todas as conversas que temos, ela repete que não sabe se o aceitará de volta, que não sabe se irá perdoar a sua traição, que, quando ele voltar, as coisas serão diferentes, bem diferentes. Sinto-me mal, mas não posso lhe dizer que ele não vai voltar, pois, de fato, já se mudou para o apartamento da outra e que parece feliz com a mudança.
Sei que não é fácil lidar com a traição e com a separação e que as reações são as mais diversas. Não julgo a conduta dos recém-separados, pois eles sabem a dor e a tristeza do momento. Agora penso sobre as frases da minha amiga. Em todas, há a certeza da volta do marido e é sempre ela o sujeito da ação: quem vai aceitar de volta ou não, quem vai perdoar ou não. Parece-me que ela mantém um texto inadequado para a cena. Quero dizer, este texto é de outra peça e de outro personagem. Ela não é o sujeito da ação, mas o ex-marido que saiu de casa. E não sei se, inconscientemente, ela diz essas coisas para sofrer menos.
O fato é que não lhe cabe mais aceitá-lo ou não de volta, porque ele não voltará. Ela já perdeu o poder de decisão sobre o relacionamento. E sobre isto que quero falar: sobre a insistência em um texto, quando ele não diz mais respeito aos acontecimentos. O caso da separação aqui é só um exemplo.
Será que muitas vezes não assumimos a máscara de um personagem, a qual se cola de tal forma em nosso rosto, que não conseguimos mais tirá-la? Ora, a peça mudou, a cena mudou, os personagens mudaram, e continuamos com as mesmas falas. Logo o diálogo não acontecerá, pois os outros personagens, ao contrário de nós, estão na peça certa.
No teatro e no cinema, vemos atores que fazem sempre o mesmo tipo ou o mesmo papel: o vilão, o padre, o garçom, o angustiado. Será que na vida real também não há pessoas com tendência a fazer o mesmo papel? Será que não dizem frases de sujeito em momentos que são pacientes? Imagine o personagem vilão achando que é o garçom. No mínimo ele vai quebrar a louça e derramar bebida nos fregueses. Este seria um pequeno desastre, se comparado com agir ignorando a realidade e insistindo em falas e atitudes fora de hora e de lugar.
Katia Sarkis

terça-feira, 17 de março de 2009

A SUPERIORIDADE É BRANCA


CRÔNICA 33


Você não deve querer provar nada a ninguém. O seu único referencial deve ser você mesmo. Aja como o atleta que verifica a marca obtida em comparação com a anterior, não com a de outro atleta. Evite a comparação inútil e a possível frustração, pois sempre poderá haver um atleta mais veloz, ao passo que você fará sempre o melhor desempenho de si mesmo.
Normalmente cometemos este equívoco de querer mostrar para o antigo patrão, para os ex ou para os vizinhos que “demos a volta por cima”, e conseguimos um emprego com salário mais alto, um namorado mais carinhoso ou um bairro de mais prestígio. É uma fraqueza humana, e é uma bobagem.
Na avidez de exibir ao outro a “nova felicidade”, agimos de modo primário e o outro logo percebe a nossa verdadeira intenção, que é a satisfação em mostrar que somos felizes e não o fato de sermos. Em outras palavras, a nossa intenção de ostentar uma vitória tem um sentido contrário: mostramos, sim, o quanto ainda estamos presos ao ex-patrão, à ex-mulher, ao ex-amigo... Se não déssemos mais importância a eles, não precisaríamos fazer com que eles soubessem de nossas vidas. Não fingiríamos passar com um carro caro pelas ruas do antigo bairro; não mandaríamos “recado” por amigo comum para o ex-namorado, para que ele soubesse que estamos muito bem com outra pessoa...
A vida não pode ser uma vingança. Aliás toda vingança é um mal-entendido, um desperdício. As nossas realizações devem ser coisas novas e não revides a tristezas antigas. Não se é superior quando se quer ser superior. A superioridade é coisa íntima, não se expõe, não se publica. O contrário é permanecer no ressentimento, na mágoa, no despeito, em suma, na inferioridade.
Quem perde tempo com a destruição do outro não consegue erguer nada de bom para si. E quem perde tempo também exibindo as novas realizações deixa no ar a dúvida de que sejam realizações de fato ou só aparências.
As felicidades frágeis são facilmente descobertas, pois elas se escondem num penteado diferente, num estilo novo de se vestir, numa forma afetada de falar ou num discurso de conteúdo mal fundamentado. A superioridade exige discrição e às vezes até isolamento. Quando há luzes e holofotes é sinal de que ainda não foi desta vez que houve aprendizagem.

katia Sarkis











segunda-feira, 16 de março de 2009

OS MAL-ACOSTUMADOS

CRÔNICA 32




Você talvez seja do tipo que faz muitas coisas: trabalha, estuda, cuida de filhos, da casa, dá assistência a parentes, e ainda consegue praticar um esporte e ter algum lazer no fim de semana. Digamos que, só por exemplo, que você também dedica-se à pintura nas “horas vagas”. É claro que você é bastante ágil e dorme pouco, afinal o dia tem 24 horas para todos. Não há milagre.
Digamos mais: este seu hobby adquiriu outra dimensão e você passou a fazer exposições há seis anos. Tem feito uma exposição bienal na galeria de uma amiga e tem até recebido boas críticas dos visitantes e vendido alguns quadros, embora ainda não tenha sido descoberta pela mídia.
Mas no ano passado, que seria o ano “sim” da exposição, você não a fez. Então alguns amigos perguntaram se você parou de pintar e familiares andam preocupados com você, suspeitam de problema de saúde ou de relacionamento conjugal.
Apesar de todos saberem de suas inúmeras e inverossímeis atividades, todos acharam normal quando você começou a pintar e a expor. Na época, ninguém perguntou como você conseguia ter tempo para “virar artista”. Houve até quem dissesse que, finalmente, você tinha tomado vergonha na cara e concretizado o seu sonho de pintora, como se você não tivesse pintado até aquele momento por vagabundagem ou incompetência.
Agora, os mesmos que não se espantaram durante anos com sua capacidade de realizar múltiplas tarefas se espantam porque você não fez uma exposição esperada e, pior, a criticam por ineficiência.
Esta é só uma história e você deve conhecer várias parecidas. O curioso é que ninguém se surpreende com o médico que tem quatro empregos, faz plantões semanais, cursa uma pós-graduação e ainda escreve artigos para uma publicação científica. Basta não sair um texto seu em um número da revisa e ele já é chamado de preguiçoso. Antes ninguém se importou com as quatro horas mal dormidas, com as refeições normalmente não feitas, com a não realização dos exercícios físicos que ele tanto recomenda para seus pacientes etc etc
Em suma, você é julgado pelo que não faz ou para de fazer, e não pelo que faz. O revisor que detectou e consertou 999 erros em um livro é condenado por não ter percebido o milésimo: a falta de uma crase. Talvez até seja despedido. Ninguém quer saber que, como ele recebe pouquíssimo por página revisada, é obrigado a aceitar trabalho em excesso, prejudicando, assim, a qualidade de sua revisão. Isto sem falar que um revisor não é máquina e que o erro passa, não por falta de conhecimento, mas de “visão”.
Agora que tal olhar para os que cobram e criticam. Normalmente eles não realizaram um sonho como o da pintora, não trabalham nem a metade do médico, não fazem cursos, não leem, mas estão sempre muito “ocupados” e “cansados”. Parecem-se mais com os revisores, porque adoram ver um “erro”, nos outros, é claro. E vão simplesmente apontá-lo com ar superior.


Katia Sarkis