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segunda-feira, 22 de junho de 2009

A DESCONSTRUÇÃO DO TEMPO



CRÔNICA 61


Encontrei com uma amiga na rua que tem uma história curiosa. Há dez anos comprou um apartamento na mesma rua onde mora e ainda não se mudou. Como o imóvel é uma cobertura de dois andares, as obras de reforma ainda não acabaram e “aos poucos” ela vem fazendo a mudança. É claro que virou piada na família e agora ninguém mais comenta o assunto, como se fosse um tabu. Durante os três primeiros anos perguntavam interessados pela mudança, depois brincavam e, finalmente, acharam melhor deixar o tema de lado, pois não entendiam mesmo como alguém leva anos para se mudar para um apartamento que, ironicamente, se localiza na mesma rua.
Também não tenho a menor ideia do motivo (ou motivos) que impede a família de se mudar. Até porque o outro apartamento é melhor e maior. O que importa aqui é que a história é verdadeira. E, pensando bem, me lembro de outras parecidas, de pessoas que ficaram anos fazendo uma casa ou uma reforma, sem previsão de término. No fundo, a partir de um momento, todos sabiam que a tal obra não iria acabar.
Não faço jogo de palavras, mas não era uma casa o que estava sendo construído, mas o passar do tempo. Tijolos e cimento são um exemplo bastante concreto da materialização da passagem do tempo. Ou seja, se a casa ficasse pronta, eles não teriam mais o que fazer, perderiam talvez o objetivo na vida, os dias pesariam sem finalidade.
Você deve estar achando toda esta história muito estranha. Também acho a princípio. São, no entanto, histórias reais que aconteceram/acontecem aqui na família, na esquina, no bairro... Não se trata de um caso sobre pessoas com problemas psicólogos ou apenas esquisitas, para as quais olhamos com distância, achando que não somos assim. Afinal somos normais, coerentes e lógicos.
Que tal vermos como mais uma história de adiamento da vida? E bastante palpável: adiar uma mudança de casa, ainda que para a mesma rua, é adiar uma oportunidade de melhoria, de mais conforto ou de mais privacidade ou de mais silencia, enfim de algo que, de alguma forma, segundo os valores e desejos da pessoa, lhe traria mais bem estar. No entanto, ela adiou esta oportunidade por dez anos. Poderia, é claro, ter morrido, sem nunca ter se mudado.
Tudo isto pode parecer simples e, em certo sentido, o é. Mas que tal pensarmos em quantas coisas deixamos de fazer, principalmente as simples, se bem que não é todo dia que podemos adquiri um imóvel. E no fim nem saberemos que morremos em dívida com nós mesmos.

Katia Sarkis


sexta-feira, 19 de junho de 2009

OS OUTROS, SEMPRE OS OUTROS




CRÔNICA 60


No ambiente familiar ou profissional é comum nas conversas a referência a um terceiro. Há aquele primo de novo desempregado ou o amigo, coitado, que não vive bem com a mulher. Isto significa que quem faz este comentário tem emprego e tem, ou pelo menos aparenta, um relacionamento conjugal bom. Ou ainda, quer disfarçar alguma dificuldade profissional ou amorosa e, por isso, fala dos problemas dos outros. Pois se ele menciona o desajuste entre um casal, é sinal de que tudo vai às mil maravilhas no plano afetivo. Ninguém vai desconfiar, por exemplo, que quem critica o vizinho que não para em um emprego esteja desempregado também. Esta é a lógica.
Reparem como nas conversas existe a tendência a se falar de alguém, para censurar, criticar, discordar. Os outros vivem nos dando problemas: duas mães falam dos filhos adolescentes e de que como é difícil esta fase; duas filhas falam das mães idosas e de que como é difícil esta fase; dois amigos falam das ex-mulheres, depois da separação, e de que como é difícil esta fase...
Sei que não lá muito educado, mas observe as conversas nas ruas: há sempre um alguém como objeto da conversa e ele está sempre em um plano inferior, com algum tipo de problema. Mas se escutasse os conselhos dos pais, as opiniões dos amigos, as orientações do chefe...seria outra pessoa. Muito melhor, é claro.
Estatisticamente, quando falamos de outra pessoa, 90% das vezes é para apontar-lhes defeitos e só 10% para fazer elogios. Isto se não lembrarmos que muitas vezes os elogios vêm acompanhados de restrições: “se deu bem na vida, mas também com o dinheiro e os prestígio do pai, ficou fácil...”; “está fazendo um sucesso incrível, mas também com a beleza que Deus lhe deu tudo vem às suas mãos...”
A vida só é difícil para nós. Nós é que somos os únicos heróis por nossas pequenas conquistas. Os outros, não; são sempre coadjuvantes ou figurantes de nossas vidas e sem nunca terem uma indicação ao Oscar.

Katia Sarkis

terça-feira, 16 de junho de 2009

TUDO TEM UM PREÇO


CRÔNICA 59


A indústria capitalista atrai seus clientes com palavras como bônus, brinde, gratuito, porque eles, acostumados a pagar por tudo (poderia ser de outra forma?) sentem-se seduzidos por algo que é falsamente de graça. Tais pessoas querem no fundo ter a sensação de que estão ganhando algo, de que estão levando vantagem. E é óbvio que não é isto o que acontece.
Se o artista não voltar para o bis, é mal visto, é tido como antipático, porque não ofereceu uma, duas ou três músicas de “graça” para a platéia. Este sentimento guloso de usufruir ou conseguir algo sem pagar revela o outro lado da questão: ter que pagar por tudo que obtemos.
A frase é velha. Tudo tem um preço, ou, pior, todos têm um preço. Este preço não é necessariamente em moeda sonante ou pago por cartão de crédito ou título do tesouro nacional; mas há um custo e, portanto, há a expectativa de uma pagamento.
O adulto infantil ou irresponsável é aquele que foge de pagar as coisas ou espera que alguém o faça por ele. Repito: aqui não me refiro a pagamento apenas em dinheiro. É claro que, no caso de uma dívida financeira, fica bem fácil perceber a irresponsabilidade ou a imaturidade de quem a contrai. Mas vejamos outros exemplos: aquele que trabalha de dia e estuda à noite e, ainda por cima, mora longe dos locais de trabalho e de estudo, sabe o preço que paga pela aquisição de conhecimento e pelo diploma. Ele, sem dúvida, dará mais valor ao estudo e à profissão, pois sabe o esforço que fez para conquistá-los.
Em qualquer relação, seja familiar, amorosa ou profissional, há sempre um preço a ser pago, para se ter tal namorado ou permanecer naquele emprego. Não quero dizer com isto que as pessoas sejam (ou tenham que ser) venais. Muito pelo contrário. Aqui pagar um preço não é se vender, não é se sujeitar ou abrir mão de suas idéias e princípios. Pagar um preço é empenhar-se por uma conquista e não esperar que ele caia do céu em suas mãos.
Quem não está disposto a pagar o preço das coisas não quer assumir a sua vida, não quer assinar o seu destino. Esta omissão em relação à própria vida talvez seja o preço mais elevado que pagamos para, em troca, olharmos de braços cruzados o tempo passar, sem sermos obrigados a um único gesto.

Katia Sarkis

domingo, 14 de junho de 2009

NÃO LEIO, NÃO OUÇO, NÃO VEJO.


CRÔNICA 58

Hoje cedo no mercado dei com uma mudança: as mercadorias passaram a ser pesadas com o caixa e não mais com um funcionário exclusivo para a balança. Havia vários cartazes espalhados pelo mercado avisando da mudança que ocorreu há três dias e, de vez em quando, pelo alto-falante a mudança era repetida.
Obviamente que no ponto das antigas balanças não há mais funcionários, só as balanças que ainda não foram retiradas. Mesmo assim, observei que várias pessoas perguntavam se eles não pesariam mais as verduras e frutas ali, como se não houvesse cartazes avisando e como e o aviso pelo alto-falante fosse falso. Era preciso que o funcionário repetisse pessoalmente que tudo passou a ser pesado na hora do pagamento, nas caixas.
O fato parece banal e talvez não seja tanto assim, embora cotidiano. Seriam todos os clientes do mercado analfabetos e ao mesmo tempo surdos? É claro que não. Ou melhor: é claro que os que perguntaram diretamente a um funcionário são. Não no sentido literal, mas são. Analfabetos, porque ignoram a linguagem escrita, porque não têm o hábito de ler cartazes, quadros de avisos, comunicados etc; só levam em consideração o que ouvem. E surdos, sim, no sentido de que não ouvem tudo, só que já sabem ou o que lhes interessa ouvir.
Há alunos que têm a mania de perguntar aos professores sobre o enunciados das questões na hora da prova: querem saber, por exemplo, se quando o a questão pede para dar as causas da revolução francesa era para dar as causas da revolução francesa. Para quem nunca teve esta experiência na escola pode parecer piada, mas isto acontece com mais frequência do que supomos. Sem dúvida, o aluno está inseguro e mal acostumado. Precisa ouvir do professor as mesmas palavras do enunciado.
Creio, porém, que isto não ocorra só com alunos adolescentes e clientes de mercados. Os casos acima, além de verdadeiros, devem ser lidos como parábolas. Muitas vemos não enxergamos/lemos o que está escrito, nem ouvimos o que dito, mesmo com a potência de um alto-falante. E por quê?
Estamos tão ensimesmados que não percebemos o outro? Só lemos ou ouvimos o que já sabemos? Ou com medo de cometermos um erro de interpretação, esperamos que alguém nos diga o que já escrito e/ou dito, pois assim não somos responsáveis?
Acho que podemos enumerar várias suposições como motivos reais para a cegueira e surdez e talvez um só não responda. Talvez haja de fato a combinação de várias hipóteses. De qualquer forma, fica a parábola do analfabeto e surdo para reflexão. Você tem ouvido o que filho, colega, namorado, vizinho, conhecido ou estranho lhe diz no dia a dia? E por que não?

Katia Sarkis

avia váHav

quinta-feira, 11 de junho de 2009

O GASTADOR

CRÔNICA 57

O modo como lidamos com o dinheiro revela muito do que somos. Dos vários tipos há dois que, por serem opostos, são facilmente identificados: o poupador e o gastador. Ambos, se exagerados, são prejudiciais. Mas do ponto de vista estritamente financeiro o gastador dá muito mais dor de cabeça.
Ele adora cartões de crédito, no plural mesmo, cheque especial, prestações a perder de vista, empréstimo de todo tipo (de financeira à família), e, em último caso, agiota. O céu é o limite, não da conta corrente, mas da disponibilidade psicológica para o endividamento.
Geralmente ele pede dinheiro emprestado para pagar outro empréstimo e assim vai ad eternum. Provavelmente ele não percebe (nem admite) que é um peso desagradável para toda a família e, em particular, para o parceiro que, de uma forma ou de outra, vai ter que arcar com as despesas impensadas dele.
Aqui nos interessa pensar outra coisa: o gastador é normalmente uma pessoa insatisfeita que, como um criança, quer preencher o álbum de figurinhas para, em seguida, comprar outro e começar tudo de novo. Há um buraco enorme dentro dele que precisa ser preenchido e, por isso, ele compra coisas e mais coisas, sem precisar da maioria, e sem poder pagar também a maioria.
Se. além de gastador, ele for também um glutão, o tipo está perfeitamente caracterizado. Ele quer devorar o mundo pela bolso e pela boca, porque tem medo do vazio. E teme o vazio interno, mais do que o prato vazio. Ao adquirir coisas, ele se sente momentaneamente satisfeito, mas como coisas de fato não preenchem o vazio interno, é só uma compensação, que passa em pouco tempo. Então ele precisa fazer mais compras, como um viciado que não consegue mais viver, senão sob o efeito da droga.
Ao contrário do que a palavra poderia sugerir, o gastador não é aquele que “gasta” a vida, o que seria benéfico, mas o que, iludidamente, tenta aprisiona-la em bens materiais. E ele, como o menininho do álbum, se senta frustrado diante das páginas completas com a sensação de que a posse daquele objeto é totalmente inútil. Por isso aprender a lidar com o dinheiro não é uma questão só de finanças domésticas ou de planejamento, mas de nossa relação com o mundo.


Katia Sarkis

segunda-feira, 8 de junho de 2009

A DESCULPA ESFARRAPADA

CRÔNICA 56




Uma vez uma senhora me disse que não tinha comprado um imóvel durante toda a sua vida, porque o dinheiro que juntara ela gastou adquirindo um piano para sua filha, quando ela estava com 10 anos. Não sou especialista em pianos, mas acho que o piano na sala de estar não custa um apartamento. Imagino que ela deva ter dito sempre isto para sua filha, desculpando-se em parte por não lhe dado uma casa, e criando-lhe um sentimento de culpa, pois os pais abriram da casa própria para que ela pudesse estudar piano.
A filha, ainda bem, não me pareceu culpada. O fato é que a mãe sempre morou com ela e por ela foi mantida. Não por ela ter lhe dado um piano no início da adolescência, mas simples fato de que a mãe jamais trabalhou. A contribuição da presença da mãe em sua para a separação é tema de outra crônica, que não faremos agora.
Interessa-nos no momento pensar como alguém fantasia uma justificativa por não feito algo. Ora, a maioria dos brasileiros não tem casa própria ou mora em um barraco por uma razão simples: recebe um salário baixo, que não lhe permite adquirir um imóvel, nem financiado. A senhora da história não é exceção, mas a regra. E por isto ela não tem do que se envergonhar. Talvez devesse se envergonhar de nunca ter trabalhado e, conseqüentemente, não ter tido nem um salário pequeno.
É claro que ninguém acredita na escolha do piano no lugar do apartamento, mas ela repete para todos, como se não fosse absurda. Não queremos aqui julgá-la, mas lamentá-la. Esta senhora, devido à idade, não mudará mais. Aqui ela aparece só como um exemplo. De alguém que fantasia, e se desculpa, sabendo que a sua desculpa é uma mentira. Mesmo assim, prefere a mentira à verdade desagradável.
Temos que evitar as desculpas, as fantasias e as mentiras. Por mais que finjamos e finjamos que os outros acreditam em nossas mentiras, uma vida falsa não é uma vida boa. Desculpas esfarrapadas como esta do piano só fazem com que os outros nos olhem com pena. No lugar de pensar que ela foi uma mãe tão dedicada que se sacrificou deixando de ter um imóvel para comprar um piano para a filha, pensam que ela é uma pessoa mentirosa e manipuladora, quando não senil, por causa da idade.
As desculpas, com a intenção de esconder algo, na maioria das vezes funcionam ao contrário e revelam mais ainda. Se esta senhora não tivesse tocado no assunto, duvido que alguém perguntasse a ela por que nunca teve um imóvel. A sua fala sobre a não aquisição da casa própria na verdade era a fala sobre outro tema: o da mentira. O subtexto desta fala não é “olhem como sou uma mãe zelosa e desprendida”, mas “olhem como sou medíocre e como me valho de artifícios frágeis para enganar os outros.
Pense se você faz o mesmo. Você costuma criar histórias para encobrir fatos que, embora verdadeiros, não lhe refletem uma boa imagem? Será que não é preferível olharmos como realmente somos e a partir daí buscarmos mudar algo em nós para melhor a fantasiarmos e ficarmos sentados fazendo um esforço interno para acreditarmos em versões falsas sobre a nossa vida?
Um filósofo já disse certa vez que o “homem está só e sem desculpa.”


Katia Sarkis



























sábado, 6 de junho de 2009

O DIFÍCIL EXERCÍCIO DE PERSEVERAR

CRÔNICA 55


Encontrei com um amigo caminhando no calçadão. Deu só um “olá”, porque estava fazendo um exercício que exigia velocidade, para ser útil à saúde. Não podia parar e interromper a eficácia da caminhada naquele fim de tarde. Apenas me disse que, como há 15 dias não fazia exercício, tinha que caminhar com rigor para compensar a inatividade.
Ora, o exemplo não é único. Aliás, é bem comum quando se trata de dietas. Os gordinhos, culpados, escolhem um dia para fazerem dieta e se esquecem dos outros seis dias na semana em que não tiveram o menor cuidado com a alimentação. De preferência, escolhem um momento em que estão fazendo a refeição com outras pessoas, para que haja testemunhas de sua “dedicação” à dieta. Mas, como a balança não se ilude com mentiras, o peso continua o mesmo ou até mais elevado.
A segunda-feira é o dia clássico para se iniciar uma dieta nova ou recomeçar um exercício. E neste dia juramos que não haverá interrupções, aconteça o que acontecer. Infelizmente, poucos conseguem manter a palavra. A maioria para, sempre com uma justificativa nobre.
Há os que compram um guarda-roupa esportivo para as aulas na academia ou os exercícios ao ar livre e se sentem atletas de triatlo. Ao final de um mês, verificam que usaram aquelas roupas novas só uma 5 ou 6 vezes e que elas estarão perfeitas por muitos verões.
O cuidado com os exercícios e a alimentação é fundamental para a nossa vida, mas não é só sobre isto que quero falar. Aqui eles aparecem como exemplos, verídicos e cotidianos. O que me importa é a pergunta:”Por que não damos continuidade ao que fazemos?”
Haveria explicações culturais dizendo que o latino (e, se brasileiro, pior ainda) tem dificuldades de disciplina e perseverança? Ou é pura coincidência de que tantos indivíduos tenham a mesma conduta? Ou isto acontece mais em cidades litorâneas, como o Rio, do que em outras metrópoles, como São Paulo?
Especulações, sérias ou simplórias, podem ser feitas, mas nenhuma responde à pergunta. E na falta da resposta, que talvez também seja pessoal, vale lembrar que devemos enfrentar a nossa incapacidade de perseverar, mantendo um hábito saudável, e de não usarmos desculpas para tudo que não fazemos.
Mais exaustiva do que uma aula de ginástica na academia ou uma caminhada no calçadão é a batalha diária com nós mesmos. Os resultados na vida são como os das dietas: só aparecem, se houver determinação e continuidade em nossos atos. Viver não é uma atividade mensal, quinzenal ou semanal. Mas diária.

Katia Sarkis











quinta-feira, 4 de junho de 2009

ALGUMAS COINCIDENCIAS, DIGAMOS ASSIM


CRÔNICA 54


Em uma roda de amigos, um comentou que recebeu uma intimação de 20 mil reais por uma fiança que assinou para que um conhecido pudesse alugar um apartamento. Todos lamentaram o fato e três deles até disseram a mesma coisa: que isto era uma lição para ele não ser mais fiador. Ora, ele indagou se ser fiador era alguma coisa errada que, portanto, ele teria que pagar por um erro cometido. E se havia alguma lição no caso, seria a de não ajudar os outros, o que não seria uma boa lição.
A conversa continuou no bar e não se falou mais no assunto. Com o tempo esqueceram-se de perguntar se o amigo pagara de fato a fiança ou não. Como no jornal, uma notícia substitui a outra e em pouco tempo nos esquecemos do que foi manchete há um mês. É claro que o fiador não se esqueceu. Ao contrário, vivia sob a ameaça de ter que fazer um empréstimo bancário para pagar uma dívida alta que não era sua. Mas, como disseram alguns de seus amigos, ele era culpado por confiar no semelhante e por ter ajudado alguém.
Aqui cabe a pergunta se a fiança é uma coisa errada, por que permanece como instituição para os contratos de aluguel? Por que juízes e advogados, que sabem melhor que se trata de uma prática nociva, não extinguem com tal instituição, criando um seguro obrigatório, por exemplo?
Alguns meses se passaram e encontro com o meu amigo fiador. Estava mais aliviado, pois no último momento um parente do inquilino devedor lhe emprestou dinheiro para o pagamento do débito, mas ele preferira não comentar o assunto com mais ninguém, decepcionado com as opiniões que ouvira das pessoas com quem conversara sobre o caso. Disse que alguns familiares, amigos e colegas de trabalho sempre diziam que ele fora ingênuo e que não deveria ter aceito ser fiador. E que aprendesse daquele dia em diante a não assinar mais nenhuma fiança. Por isso, não comunicou a ninguém o desfecho do caso.
Não sei o que aconteceu na família ou no trabalho, mas na nossa roda de amigos comuns, verifiquei certas “coincidências” nos últimos dois meses. Um amigo teve que ser internado às pressas para um tratamento não coberto pelo plano de saúde; outro teve um problema com o carro e ele ainda não tinha renovado o seguro; e um terceiro teve problemas no seu pequeno comércio. Quando, sem querer, pensei sobre estes casos, constatei que o “prejuízo” deles era parecido com o do meu amigo fiador. Não contei a “coincidência” para nenhum dos quatro, até porque poderia causar constrangimentos. O fato é que esta história recente, ainda que verdadeira, me soa como uma parábola.
Não sei bem o que esta parábola significa, ou qual a sua lição. Quem sabe o leitor a tenha compreendido melhor do que eu?

Katia Sarkis










terça-feira, 2 de junho de 2009

O QUE É PROBLEMA?

CRÔNICA 53


Costumo dizer que uma coisa é cara ou não, em função da percentagem que ela representa de seus rendimentos. Logo 100 reais para quem recebe salário mínimo é uma quantia elevada, mas para quem recebe 100 salários mínimos, é insignificante.
Bem, não é de questões financeiras que trata este texto. O parágrafo inicial é só um exemplo para reflexão. Quero pensar sobre o que é problema. Esta semana recebi várias notícias de pessoas próximas que são problemas. Um perdeu um jovem filho afogado; outro descobriu que tem um tumor no cérebro e tem que operar com urgência; outro soube que mulher o está traindo há alguns meses; e outro recebeu uma cobrança indevida de 20 mil reais. Como dizem, a bruxa parece solta.
Seja lá como for, todos se vêem diante de perdas, e algumas irreparáveis. Qual é a pior? Talvez algum preferisse trocar de lugar com outro, pois a dor também é subjetiva e não há uma escala consensual de sofrimento. Diante destes fatos, cabe agora pensar na reação, como se reação fosse algo que pudesse ser racionalmente escolhido. Sabemos que não é.
De imediato, diríamos que perder dinheiro é mais fácil do que perder um filho, ou perder a mulher de sua vida, ou fazer um operação de risco. Já em relação aos outros fatos não saberíamos escolher, pois as vidas e seus valores são bem diferentes.
Há como superar certos problemas ou eles são insuperáveis? E o que é o dia seguinte a uma perda insuperável? Os meses seguintes? Os anos seguintes? A vida seguinte? A vida sempre é outra. Não há como não acusar o golpe da dor ou da perda. Não há como não mudarmos, como sermos os mesmos.
E neste momento que surge o verbo refazer, ou refazer-se. Mas não é fazer a mesma coisa de novo, como se fosse um exercício de matemática cuja resposta encontrada não era a certa. Refazer-ser é fazer-se outro, embora o mundo do lado de fora seja o mesmo. A surpresa dos golpes mencionados acima nos desarma e nos faz mais frágeis para enfrentá-los.
Para os outros, somos os mesmos. De um modo geral, nos consolam, mas não percebem que formos obrigados a mudar. E esta mudança (ou reação) é algo que nos foge, que foge ao controle da razão. Pode ser que a vida tenha plasticidade e se acomode a novas formas, mas a aparência de uma nova forma nem sempre é muito agradável.

Katia Sarkis